Ruído Branco
O desastre químico em Ohio que a ficção se torna realidade
CURIOSIDADESMISTÉRIOS
Arthur Noronha
5/22/20253 min read


Por Arthur Noronha
22 de maio de 2025
Em 2022, chegou às telas dos cinemas e das plataformas digitais o filme “Ruído Branco”, dirigido por Noah Baumbach e estrelado por Adam Driver. A produção, inspirada no clássico literário de Don DeLillo, mergulha o espectador em uma narrativa densa e surreal, onde a vida de uma família americana é abalada por um acidente ferroviário que libera uma nuvem tóxica sobre uma pequena cidade do interior dos Estados Unidos. O que parecia apenas mais um exercício criativo da sétima arte, no entanto, revelou-se algo muito além disso: uma premonição assombrosa.
O enredo gira em torno de Jack Gladney, um professor universitário que leciona estudos sobre Hitler em uma universidade fictícia no estado de Ohio. Ele vive com sua esposa e filhos em uma rotina comum, até que a tragédia se abate sobre sua cidade. Um trem descarrila e espalha um gás tóxico pelo céu da região, provocando pânico, evacuação e uma crise existencial que vai além dos danos materiais. A história se desenrola com tons de crítica social e reflexões profundas sobre morte, medo e o colapso da normalidade.
O que ninguém poderia prever é que, cerca de um ano após as gravações do filme, um evento quase idêntico aconteceria. E não na ficção, mas na vida real.
No início de fevereiro de 2023, a cidade de East Palestine, em Ohio, foi palco de um acidente chocante. Um trem carregando produtos químicos perigosos, incluindo cloreto de vinila, saiu dos trilhos e provocou uma enorme liberação de gases tóxicos. O cenário que se formou logo após o desastre parecia tirado diretamente de uma cena do filme. Ruas evacuadas, moradores usando máscaras, sirenes ecoando pelas redondezas e um céu encoberto por uma nuvem química.
O mais inquietante é que parte do filme “Ruído Branco” foi gravada justamente naquela região. Alguns dos figurantes que aparecem em cenas de evacuação do longa eram, de fato, moradores de East Palestine. Pessoas comuns que, em um momento, interpretaram vítimas de um desastre fictício e, no outro, estavam vivendo exatamente aquilo que tinham encenado diante das câmeras. Um desses figurantes, Ben Ratner, chegou a comentar com a imprensa que se sentia como se estivesse revivendo um pesadelo encenado, algo que ele jamais imaginaria que pudesse acontecer com ele e sua família.
A sensação de déjà vu que tomou conta da população foi acompanhada de sentimentos de medo, frustração e incredulidade. Muitos moradores, ao lembrarem do filme, começaram a se perguntar sobre os limites entre o real e o imaginário. Como algo tão parecido pôde ocorrer em tão pouco tempo, e no mesmo local?
As autoridades agiram rapidamente para conter os efeitos da contaminação, mas os impactos foram duradouros. Comunidades inteiras ficaram em alerta por semanas. Havia medo de contaminação da água, do solo, do ar. Algumas famílias relataram sintomas respiratórios, irritações na pele, além de uma ansiedade permanente com relação à saúde de seus filhos. Para muitos, a tragédia despertou também questões mais amplas sobre segurança ferroviária, armazenamento de produtos químicos e até negligência regulatória.
Curiosamente, o filme que serviu de espelho para esse episódio não tem a intenção de prever o futuro. Na verdade, o romance de Don DeLillo foi escrito em 1985, numa época em que o medo da contaminação e dos desastres industriais estava em alta nos Estados Unidos. Naquela década, a explosão da fábrica da Union Carbide em Bhopal, na Índia, e o acidente nuclear de Chernobyl deixaram marcas profundas na memória coletiva mundial. DeLillo capturou esse medo e o traduziu em literatura. Décadas depois, a arte voltou em forma de cinema. E, em 2023, a realidade se alinhou ao roteiro.
Há quem chame isso de coincidência. Outros preferem o termo sincronicidade, conceito criado pelo psicólogo Carl Jung para explicar eventos que, apesar de não possuírem relação causal, parecem conectados por um significado simbólico profundo. O fato é que, entre trilhos retorcidos e o cheiro químico no ar, os moradores de East Palestine sentiram na pele o que é viver dentro de uma história escrita por outros.
“Ruído Branco”, ao retratar a fragilidade da vida moderna diante do inesperado, acabou revelando-se uma obra mais profética do que seus próprios criadores poderiam imaginar. O que era para ser apenas um drama existencial virou um espelho desconcertante da nossa realidade. Um lembrete de que, por vezes, a ficção não apenas imita a vida, mas a antecipa com detalhes que desafiam qualquer explicação lógica.
E, nesse cruzamento inquietante entre arte e vida, resta a todos nós a pergunta: o que mais está escrito nas entrelinhas da ficção que ainda não se tornou real?